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ILHAS EM EPÍTETOS – Primeira Videografia
Corvo: A Ilha da Sabedoria



Entrevistado: Sr. Manuel Rita

 

Foi autarca da ilha. Exerceu três mandatos. Idealizou e criou a primeira escola básica e integrada do arquipélago. Editou vários livros em colaboração com artistas, investigadores e fotógrafos. Livros que registam a história do Corvo desde o primeiro avistamento até os nossos dias. Na juventude, o Sr. Manuel Rita emigrou para a América, experiência que consolidou o seu desejo de voltar para a ilha e nela trabalhar transformando as antigas vivências através dos projetos que conferiram à ilha maior autonomia energética e mais acesso aos recursos hídricos.

 

Análise do Depoimento

Nossa primeira incursão pelo depoimento do Sr. Manuel Rita será limitada por algumas fórmulas oportunas que ele utilizou para expressar o sentimento de que a cultura é a memória da coletividade. Tais fórmulas serão suficientes para produzirem resultados instigantes para a nossa análise.

É o que ocorre, por exemplo, quando o Sr. Manuel Rita afirma que os livros, cujo processo editorial foi organizado por ele, irão sustentar a memória da ilha: “quis deitar no papel o que era a vivência antiga do Corvo; livros que vão aguentar a memória da nossa vida no Corvo”.

O ato do armazenamento da memória através da palavra deitada no papel atua contra o esquecimento e contra o tempo, enquanto o ato da recordação e, por conseguinte, o ato da leitura acontecem dentro do tempo. No que diz respeito à psicomotricidade da recordação mobilizada pelo paradigma espacial das palavras deitadas, estendidas e alongadas, podemos dizer que elas recuam em favor da competência do leitor que as põem de pé. Erguidas as palavras, elas dão continuidade ao processamento das informações repassadas possibilitando a comunicação entre épocas e entre gerações.

É notável que o testemunho do Sr. Manuel Rita vá de encontro à tese defendida por Aleida Assmann em seu livro: Espaços da Recordação – formas e transformações da memória cultural. Nesse livro, Assmann aborda o papel da fixação das lembranças por meio da escrita que “oferece ao som efêmero das palavras uma proteção material duradoura”. Segundo Assmann, “a escrita se transforma em armazenador espaçoso e confiável de palavras, pensamentos, imagens e ideias; o que é sempre depositado no armazenador faz parte da forma de existência da duração e não está exposto a mudanças” (2011, p.104).

Aqui podemos iniciar uma segunda linha de reflexão também inspirada no depoimento do Sr. Manuel Rita. Ela está ligada com o último tema do depoimento que falta discutir: a transformação das vivências antigas do Corvo através da intervenção dos projetos de políticas públicas implementados pelo Sr. Manuel Rita no decorrer do seu trabalho enquanto autarca da ilha.

Segundo as palavras do Sr. Manuel Rita:

“Hoje a vida no Corvo não tem nada a ver com aquela em que eu me criei há setenta anos. Hoje a gente vive como os outros. As internets poem-nos no centro do mundo. Isso é bom por um lado mas por outro estamos perdendo as características daquilo que era a vivência do Corvo. Hoje é a vivência moderna e eu ainda fui da vivência antiga. De maneira que eu gostei também, como autarca, de mudar um bocadinho essa vivência da antiguidade para a modernice”.

Convém observar que é sobre o plano político, ou seja, sobre o plano das ações humanas, que são instauradas as relações objetivas e explicativas da percepção histórica das escalas do tempo e das suas mutações.

Do mesmo modo, a consciência da dimensão subjetiva do tempo é possível de mensurar porque ela também está ancorada na experiência política empírica vivida pelo Sr. Manuel. Tendo em vista a posição institucional que o Sr. Manuel Rita ocupou, somos informados, mediante o seu depoimento, que ele decidiu dispor de todos os meios e recursos que conseguiu angariar para modernizar a ilha e torná-la menos inóspita fixando, deste modo, o fim de um ciclo de longa duração por ele postulado e vivenciado, edificando a transição para uma nova conjuntura marcada pela novidade, pela modernidade e pela mobilidade.

A escala múltipla do tempo é aqui marcada tanto pela percepção do que é antigo enquanto continuidade, repetição de um modo de vida entendido como tradição, como pelo sentimento de ruptura que engloba a temporalidade de uma história nova. Nova porque sua duração não é mais linear, visto que, ela engloba conjunturas, ciclos e eventos circunstanciais onde articulam-se as dimensões económicas, políticas e sociais sob a cadência acelerada da globalização.

Sobrepor durações objetivas e mensuráveis nos envia ao debate caloroso sobre o historicismo oriundo das controvérsias que envolveram intelectuais franceses e alemães. Estes últimos participaram de correntes de pensamento comprometidas com a crítica da razão histórica concebida por Dilthey. E foi Dilthey quem demonstrou a partir do conceito de vivência (Erlebnis) como construímos a própria realidade em que vivemos. Afirma ele em seu texto Vida e Concepção do Mundo, publicado no ensaio Os Tipos de Concepção de Mundo:

“A raiz última da mundividência é a vida. Espalhada pela Terra em incontáveis decursos vitais singulares, vivida de novo em cada indivíduo, ela é mais plenamente apreensível, segundo toda a sua profundidade, na compreensão e na interpretação do que em toda a percepção e captação da própria vivência” (2008, p. 08).

 

É a vivência que ao abarcar a própria vida constitui “continuamente sua própria prova”. É ela que oferece a condição de possibilidade do conhecimento histórico e dos seus fundamentos. Em toda a sua força de expressão, a vivência estabelece o marco divisório para além do qual o pensamento não tem acesso. Ou, ainda de outro modo, a vivência constitui o próprio critério vivo responsável pela triagem dos fatos da consciência, visto que: “Os pressupostos fundamentais do conhecimento estão dados na vida e o pensamento não pode conceber por trás deles”.

Deste modo, a condição fundamental imposta pelo princípio dos fenómenos, para a determinação dos fatos da nossa consciência, resume-se na necessidade de eles serem vivenciados por nós. Se infringirmos esse princípio fundamental corremos o risco de perder a sintonia com a vida e com ela a possibilidade de compreender o mundo humano histórico-social.

O Sr. Manuel Rita, assim como postulou Dilthey, estabelece o alcance de sua “filosofia da vida” tendo como pano de fundo o significado da vivência. Esta última não é apenas a projeção do seu próprio critério de verdade, mas, como tal, a medida de todas as coisas. Ela é tecida, como nos mostra o Sr. Manuel, em meio a uma atmosfera em que valores, significados, expressões, ideias e ideais são apreciados em comum, encontra-se atrelada a uma origem extra-individual isto é, na “esfera das coisas comuns”. E essa origem lhe dá foros de objetividade, tornando-a célula viva do mundo histórico social.

 

Bibliografia Consultada

ALMEIDA, Onésimo Teotónio. Açores, Açorianos, Açorianidade: um espaço cultural. Ponta Delgada: Instituto Açoriano  de Cultura, 2011.

DACOSTA, Fernando; BARROS, Jorge. Corvo: Ilha da Sabedoria. Ed: Éter, 1995.

MATOS, Artur Teodoro; LEITE, José Guilherme Reis. Retratos sociais da Ilha do Corvo: do povoamento ao século XIX. Braga: Núcleo Cultural da Horta, 2016.

SARAMAGO. O livro de marcas da Ilha do Corvo. Câmara Municipal do Corvo, 2013.