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Terceira Videografia Graciosa: A Ilha da Graça Plena



Entrevistados:

Sra. Maria José Quadros

Autora do Livro: O Património Oral da Ilha Graciosa: retrato vivo de um povo. A Sra Maria José Quadros fundou e dirige a Casa Museu João Tomaz Bettencourt que foi a casa comercial mais importante da ilha. Fundada em meados do século XIX, reabriu em 2014 como casa museu, território cultural que conta a história da ilha através dos seus objetos e lendas.

Sr. Rufino Pereira

Foi mestre baleeiro. Autor do livro: A caça ao cachalote na Ilha Graciosa – uma memória descritiva. Sr. Rufino Pereira é neto do primeiro baleeiro da ilha e filho de outro importante mestre baleeiro. Foi o primeiro mestre das artes piscatórias com certificação obtida em Lisboa.

Análise dos Depoimentos

A detalhada ars memorativa organizada pela Sra. Maria José Quadros é um projeto fantástico. Projeto este que abarca a organização e a publicação de um livro – O Património Oral da Ilha Graciosa: retrato vivo de um povo e a criação da Casa Museu João Tomáz Bettencourt. A Sra. Maria José Quadros articula através do livro e da Casa Museu a necessidade da lembrança e da contemplação para cada vida vivida na ilha. Ela trabalha contra o esquecimento mostrando que a queda no anonimato aniquila a vida.

Os leitores do livro provavelmente trarão do texto um estímulo intelectual que lhes chamará a atenção para a imensidão de histórias que poderiam ter desaparecido para sempre. Eles vão ler as narrativas orais transpostas para o suporte literário como uma enciclopédia contrafactual do esquecimento e vão tomar gosto pelo desejo de arquivar o que é inarquivável: a totalidade de uma vida inteira. É como ter em mãos o livro da vida cuja finalidade é dar provas da univocidade de cada vida vivida ao explicitar que nenhuma vida pode ser vivida em vão.

A partir dessa perspectiva, um grande arquivo de narradores e de narrativas faz florescer o sonho da durabilidade ilimitada e da memória ampliada. A apresentação dos narradores é cuidadosa. Vemos todos eles identificados e representados em mini fotografias ao lado das suas histórias, massa de narrativas, totalmente diferentes entre si, que surgem como uma memória total. Uma memória portentosa que se ocupa com a busca e o registo de testemunhos de coisas cotidianas, irrelevantes, talvez, mas nunca insignificantes ou indignas de nota.

Entre os “casos verídicos” e as “lendas da Graciosa”, encontramos narrativas seladas por uma máxima moral, histórias de feiticeiras e anedotas inspiradas em situações do cotidiano. Diante dessa diversidade, a memória está vinculada a duas competências opostas: o senso pessoal de identidade coletiva e o senso de realidade. A oposição faz-se prontamente percetível quando verificamos que o grande propósito do livro é preservar a tradição focando o problema da identidade cultural no espaço da vida comunitária.

Neste contexto é muito esclarecedor as tipologias do jogo social da memória e da identidade estabelecidas pelo antropólogo francês Jöel Candal. Segundo Candal, “instigar pela emoção e pela imaginação uma memória viva” contribui para a manutenção da “imagem de uma permanência que o grupo deseja para si mesmo, legitimando o sentimento de uma identidade comum” (2012, p. 149).

Por um lado, esse arquivamento de “casos” e “lendas” tem a ver com a coleta de objetos empreendida pela Sra. Maria José Quadros para a realização do projeto da Casa Museu, a casa da eternidade, que pretende transformar o efémero no durável. Por outro, muitos dos objetos arquivados na Casa Museu foram recuperados do lixo ou impedidos de lá irem parar pelas mãos da zelosa Sra. E assim soa o depoimento da Sra. Maria José Quadros:

“Veja lá, tudo isto que está aqui, isto tudo ia para o lixo.

Não  foi assim de um momento para o outro. Mas a vida das pessoas começou a mudar, as pessoas passaram a ter mais dinheiro e outras oportunidades e quiseram se desfazer do passado que tinham. Porque esse passado tinha trazido algumas mágoas da falta de muita coisa. Então com a abundância de dinheiro que começou a circular e começou a haver muitas coisas também a venda. Porque antigamente não havia muito dinheiro mas também não havia muitas coisas a venda, só o essencial. Agora há o supérfluo. Temos as casas cheias de coisas que a gente nem precisa”.

Entre arquivo e lixo, estamos diante de uma ótima metáfora para a efemeridade da vida. O lixo é o descarte, um fardo inútil do passado. O arquivo é a contraimagem do lixo. É tudo o que queremos reter, acumular, guardar para preservar e fazer durar. Esta estreita relação entre arquivo e lixo, propiciada pela acurada disposição e exposição dos objetos no interior da Casa Museu, oferece suporte material para a construção de uma memória coletiva inovadora feita a partir do “arquivo lixo”. Um armazenador fascinante do que já estava esquecido e volta a ser lembrado porque deixa de ser lixo e transforma-se no fundamento concreto de narrativas e de memórias.

 

Sr. Rufino Pereira

Com a sagacidade colhida no tempo, o Sr. Rufino Pereira escreve na epígrafe do seu livro A caça ao cachalote na Ilha Graciosa – uma memória descritiva:

“Sou neto de um velho baleeiro, filho de outro grande baleeiro e, eu próprio, andei nas lides da baleia.

Por isso, tomei em mãos a realização deste projecto” (2005, p.02).

No epílogo, ele revela o esforço empreendido para registar as experiências armazenadas na memória:

“Com certeza muito terá ficado por referir nestas memórias relativas à caça à baleia na Graciosa.

Pretendo apenas dar um pequeno contributo pessoal, assente na minha experiência como baleeiro e no recurso à minha memória, para que assim, sobretudo as gerações futuras, possam recordar uma das mais importantes atividades marítimas que se praticou na Graciosa e que tão fortemente marca a cultura desta ilha” (2005, p.42).

Se as lembranças surgem, como o Sr. Rufino nota, sempre delineadas por contornos de esquecimento, elas são, via de regra, o elo entre experiências e expectativas. A experiência do passado e a expectativa do futuro acentuam a percepção da vivência temporal aqui concebida como um reservatório de possibilidades que relativizam o presente em sua pretensão de deter um caráter absoluto. A herança recebida do passado familiar e a extensão da memória em direção às gerações vindouras certamente encontram nas memórias descritivas do Sr. Rufino o terreno fértil para fazer germinar laços identitários comunitários através da reconstituição narrativa da baleação, atividade marcante na história da ilha.

Essa reapropriação do passado insular, juntamente com a evocação de experiências íntimas, transmite para o grupo a dimensão singular da experiência pessoal. Enaltecer esse passado transformando-o num marco distintivo para todos que se reconhecem como parte do mesmo grupo concede um tom épico a uma atividade que exigia muita coragem daqueles que a tomavam como profissão. Ser baleeiro significava correr muitos riscos ao colocar-se diante da morte trágica por confrontar um animal que possui dimensão e força colossais.

Nas narrativas do Sr. Rufino Pereira são recordadas as histórias de mortes  e de naufrágios com muito pesar e com muitos hiatos. A dor indizível da perda dos companheiros mostra-nos que a baleia cachalote não habita somente os mares dos Açores. Ela povoa o imaginário coletivo do povo açoriano. Na sua monumental imagem, podemos identificar o sentimento do pavor originário do ser humano diante das forças da natureza. A força do “perigo que seduz” aliada ao desejo de “vencer as contrariedades” da vida traz à tona “sentimentos com raízes no mais profundo da alma humana”, como testemunhou Raul Brandão em seu célebre livro As Ilhas Desconhecidas (2011, p.118).

À intensidade trágica dessas experiências corresponde a sua sobrevida e os modos de apaziguar suas fatalidades. Uma serenidade apaziguadora, despertada pelo viés trágico da vida e da morte, é a tonalidade que modula as palavras amenas proferidas pelo Sr. Rufino ao finalizar o seu depoimento:

“Este é o barco que eu arranjei. É para a pesca. Tem um outro barco que eu fiz ali no barracão.

Sabe de uma coisa. Eu já fiz oitenta e seis anos e ainda vou ao mar sozinho e ainda volto com o meu barco para baixo e para cima sozinho. Felizmente, eu ainda tenho essa possibilidade.

Vai se andando devagarinho. Eu não pedi para vir para cá, também não vou pedir para ir para lá. Quando eu tiver de ir para lá, olha, lá vai.”

Boa ou má, épica ou aberrante, a história da atividade da baleação nos Açores tem o dom de converter os seus protagonistas em indivíduos célebres ou mártires. Todos eles são como os personagens que a literatura de Raul Brandão converteu em exemplum, modelos cuja seleção de traços de caráter são julgados dignos de imitação. Entre realização e idealização reside o futuro desta prosopopeia memorial. Caberá às futuras gerações participar deste jogo identitário, legitimando ou desvalorizando a herança deixada pela geração precedente. Entre arquétipos e estereótipos de heróis ou de carrascos repousará o destino das memórias do Sr. Rufino Pereira.

 

Bibliografia Consultada

PEREIRA, Rufino Cordeiro Dias. A caça ao cachalote na Ilha Graciosa – uma memória descritiva. Município de Santa Cruz da Graciosa, 2005.

QUADROS, Maria José da Silva. O Património Oral da Ilha Graciosa: retrato vivo de um povo. Município de Santa Cruz da Graciosa, 2017.

DORES, Vítor Rui. A Graciosa Ilha. Cam. Municipal, 2009.