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Nona Videografia São Miguel: A Ilha da Prosperidade



Entrevistado:

Doutor João Bosco Mota Amaral. Foi o fundador, em Maio de 1974, do Partido Popular Democrático (PPD) nos Açores, defendendo o projeto da autonomia política e administrativa do arquipélago. Atuou como redator do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.

Em 1976, foi eleito para o cargo de primeiro presidente do Governo Regional dos Açores, função que desempenhou até o ano de 1995.

Autor de vários títulos na área do Direito. Recebeu as mais altas condecorações da República Portuguesa.

 

Análise do Depoimento

A nova identidade coletiva dos açorianos possui uma certidão de nascimento. O marco zero do cômputo  – a instituição da autonomia política no ano de 1976, teve por efeito dotar o grupo social insular de sua identidade singular em relação aos continentais, provendo uma forte coesão entre os seus membros ou de uma grande parte dentre eles.

As memórias da origem autonómica são vividas pelos açorianos como o acontecimento que vai dar sentido a toda história e identidade da região. Essa ligação profícua entre história e identidade perfaz o cerne do depoimento do Doutor Mota Amaral.

 

“Recebemos um mandato muito nítido [nas eleições de 1976] para uma nova fase da nossa vida coletiva que fosse de uma autonomia política com legislação e governação própria. Ficamos mandatados para que essa nova formulação ficasse consagrada na constituição da república. Foi o que aconteceu, de fato. A constituição passou a ter um capítulo próprio sobre as regiões autónomas e abriu essa fase nova para os Açores e para o povo açoriano.

A partir da altura em que houve eleições para a formação de um parlamento regional, perante o qual passei a ser o responsável pelo governo regional, iniciou-se esse capítulo novo na história dos Açores: os Açores como uma região autónoma da república portuguesa. Reconhecendo a nossa identidade portuguesa mas afirmando-a numa perspectiva emancipadora ou emancipada, melhor dito, sendo protagonizada por um povo – o povo açoriano que se considerava perfeitamente capaz para definir e realizar Portugal aqui” (07 min – 08 min 38 s).

A relação entre memória e história nos mostra que os projetos identitários do povo açoriano conduzem ao cerne da reflexão sobre motivação política e configuração da história através de modelos vivos, indicadores dos rumos que conduzem ao futuro. A consciência de um abismo intransponível em relação ao passado colonial e ditatorial possibilitou uma perspectiva nova quanto ao passado mais recente. Esse passado deixou de ser apenas uma compilação de casos de arbitrariedade e penúria e passou a corporificar um estilo de vida diverso e concepções diversas do mundo. De várias maneiras, tais memórias correspondem ao desejo comum de reconhecimento dos valores culturais e de segurança material.

Observa-se, ainda a presença marcante da memória do sofrimento compartilhado. Compartilhamento que se quer manifesto no quadro da relação com a tragédia coletiva causada pelo “Sismo de 1980” que fez dezenas de vítimas e afetou de forma dramática a Ilha Terceira e deixou marcas nas Ilhas Graciosa e São Jorge. Evocando essa memória do sofrimento em comum e o peso que ela exerce sobre a identidade coletiva açoriana, o Doutor Mota Amaral faz uma observação instigante que, num primeiro momento, causa perplexidade.

 

“O terremoto de 1980 foi outro momento importantíssimo da construção Açoriana, quando as forças da natureza afundam uma das maiores cidades dos Açores e perdem a vida muitas dezenas de pessoas e ficam no desabrigo dezenas de milhares de famílias. Nesta altura, sentimos todos desafiados para tratar de reconstruir o que tinha ficado destruído pelo terremoto.

E pela primeira vez na nossa história diante de uma grande tragédia telúrica ao invés da população debandar, não, ficamos aqui para reconstruir o que havia ficado destruído. Veio até muita gente ajudar a reconstruir. Ora, em situações paralelas, antes da existência dessa capacidade de decisão própria que foi a autonomia política, ou seja, um governo próprio dos Açores, o que acontecia era que as pessoas abandonavam [as suas ilhas].

Em 1957, com a erupção vulcânica dos Capelinhos foi criada até uma lei especial para permitir a emigração para a América de pessoas vítimas do vulcão. E em 1973 quando houve um tremor de terra em São Jorge o governo da altura o que fez foi pegar as pessoas e levá-las para Angola, para o sertão de Angola.

Ora bem, nós aqui ficamos, nós vamos reconstruir, vamos por isso de pé. Era um sinal de que havia capacidade de decisão e entusiasmo para enfrentar os grandes desafios dos Açores” (10 min 55 s – 12 min 37 s).

 

A visão dos cataclismas se perpetuou na memória coletiva dos açorianos e se manifesta, após o Sismo de 1980, em uma tradição de resistência e de sentimento de pertencimento que a força desse evento trágico foi capaz de transmitir. Deste modo, o Doutor Mota Amaral descreveu um fenómeno social curioso que constitui o elemento articulador da memória e da identidade regional. Tal como ele nos dá a ver ao mostrar que a recordação do infortúnio permanece como um símbolo que permite ao povo açoriano estabelecer laços num esforço de enraizamento na terra natal. Essa perspectiva performativa é aqui evidenciada e ajuda a compreender como as representações da memória coletiva compartilhada habilitam um grupo social a narrar-se a si próprio. Ela é a expressão de um modo de pensar no qual o passado trágico é valorizado e possui autoridade pela importância que lhe é conferida.

Na presença desses traços profusos, podemos dizer que a reivindicação da identidade açoriana se pensa a si própria como um elemento do património cultural imaterial, visto que, é considerada como um investimento identitário a ser transmitido, como um dever de memória. É nesses termos que a instituição da autonomia política define seu património cultural ao fazer a gestão do passado no presente mediante a criação deliberada de um calendário comemorativo do dia da autonomia, instituído como lei pelo parlamento açoriano no ano de 1980[1].

Comemorar a autonomia significa continuar acreditando na herança cultural deixada pelas gerações precedentes. Sobretudo quando a forma dessa comemoração vem revestida com cetro, manto e coroa tendo em vista legitimar a união do poder espiritual e do poder político, fazendo coincidir o dia da comemoração da autonomia com o dia da celebração do Espírito Santo, principal festividade cristã do povo açoriano.

 

[1] As comemorações, segundo Augusto Comte em seu emproado Calendário Positivista, “invadem os calendários para organizar as memórias na esperança de unificá-las ao despertar o sentimento de uma cultura comum”. Elas também são o “instrumento propício para se exercitar a arte da memória” (1849, p.11).

 

Bibliografia Consultada

MOTA AMARAL, João Bosco. Os Açores, Portugal e União Europeia. Ponta Delgada: Letras Lavadas, 2019.