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Oitava Videografia Santa Maria: A Ilha Prodigiosa



Entrevistado:

Pepe Brix. Fotojornalista mariense. Autor de documentários fotográficos publicados pela “National Geographic”. Foi condecorado com o prémio Gazeta de fotojornalismo em 2015 e em 2016. Em 2016, Pepe Brix embarcou na traineira “Mestre Soares” da Ilha de Santa Maria para realizar o documentário fotográfico sobre a pesca do atum. Seu trabalho foi publicado na revista “National Geographic” de outubro de 2016 com o título: “Na rota das grandes manchas”. Na Islândia, também em 2016, elaborou um documentário fotográfico sobre a indústria bacalhoeira.

 

Análise do Depoimento

 

Em seus projetos fotográficos sobre o mar dos Açores, Pepe Brix concede um lugar de destaque à revitalização do sentimento de uma cultura comum que aproxima os Açorianos do passado dos Açorianos do presente. Sem nostalgias enrijecedoras, ele chama a atenção para a necessidade da geração atual fomentar o sentimento de continuidade através da adesão à carga identitária forjada pelo poeta Vitorino Nemésio, criador da ontologia da “Açorianidade”. Pepe Brix faz viver e reviver  os valores comunitários aceitando todas as mudanças radicais trazidas pela contemporaneidade. Por pertencer à geração fim de século, a primeira geração pós-tradicional, a primeira que se encontra em uma situação de incertezas estruturais, caracterizada pela mobilidade e pela mudança de todas as referências, lemos em seu depoimento as camadas mnemónicas que se inscrevem em suas palavras:

 

“Gosto muito desse debate que anda a volta do conceito de Açorianidade do Vitorino Nemésio. E acho muito sinceramente que os Açorianos têm qualquer coisa… Que essa condição de ilhéu faz com que de alguma forma a nossa personalidade adquira características muito particulares. Eu acho que esse isolamento no qual os açorianos viveram durante muito tempo. O fato de estarmos separados do continente europeu, por cerca de mil milhas náuticas, acho que faz alguma diferença. Cria um peso nas pessoas. Na forma como nós olhamos para tudo, para os assuntos que nos põem à frente para a gente debater sobre eles. Tudo aos nossos olhos é interpretado de um modo diferente, acho eu.

Por exemplo, eu estive a fazer um trabalho na Islândia que estou agora a apresentar e senti exatamente a mesma coisa. Portanto, senti que esse isolamento também tinha um peso na sociedade islandesa. Isso consolidou essa noção que eu já tinha antes. O fato de ter percebido e identificado algumas semelhanças entre os Açores e a Islândia ajudou-me a perceber melhor a minha identidade e porque a minha identidade tem essa relação tão próxima e é tão influenciada por essa história de isolamento” (2, 20 – 4, 00).

 

Pepe Brix transforma a recordação do passado em questionamento crítico do presente através do seu olhar fotogénico que cria a imagem fotográfica e vê a cultura açoriana através dela. Com a sua máquina de fabricar imagens, ele nos mostra que um grupo social pode celebrar seu pertencimento a um universo cultural ultrapassando suas próprias fonteiras, quer se trate dos Açores ou da Islândia as referências culturais ostentam sempre a marca do gênero humano. Nessa perspectiva, a máquina fotográfica é a máquina capaz de criar identidades insulares além fronteiras, visto que, ela capta o dom do olhar inquietante que faz suscitar a necessidade de reflexão acerca dos desafios identitários contemporâneos. São esses mesmos desafios que explicam a originalidade das fotos enquanto expressão de imagens seletivas que buscam transformar o olhar complacente, que subtrai as alteridades, num olhar que reivindica o multiculturalismo diante dos imperativos inflexíveis do fundamentalismo.

Dessa forma, é a partir do olhar que molda parentescos entre culturas que encontramos a representação de uma memória familiar estruturada tanto na conservação de fotografias emblemáticas da Ilha de Santa Maria como na transmissão da sabedoria que envolve a própria arte de fotografar.

 

“O meu avô e o meu pai também eram fotógrafos. Deixaram um grande espólio fotográfico. E uma das coisas que me ajudou decidir a ser fotógrafo foi, sem dúvida, o trabalho que o meu avô deixou feito e o meu pai também e que é um trabalho de caracterização do meio rural antigo. Principalmente o meu avô fazia fotografias do meio rural. Fotografava o pessoal na apanha da eira, atividades extremamente tradicionais na altura, anos cinquenta e sessenta. E essas imagens realmente me atraíram bastante e me levaram a querer explorar essa vertente documental da fotografia, através das imagens de Santa Maria. Estou-me a lembrar das imagens da eira, das imagens de alguns acidentes que ocorreram em Santa Maria como o naufrágio do Ornel ou do Velma que foram navios que naufragaram aqui, ao largo da costa. Mas, acima de tudo, lembro das fotografias do mundo rural que o meu avô fazia, retratos acima de tudo que me ajudaram a ter vontade de continuar a explorar esse lado” (12, 30 – 14, 07).

 

A memória genealógica e familiar funda uma tradição mantida por meio de imagens que assinalam o vestígio do ausente de maneira enfática ao estruturar os espaços da recordação cultural através da materialidade da fotografia. Enquanto média memorativa, as fotos do espólio fotográfico herdadas do avô e do pai constituem o que o antropólogo Maurice Halbwachs denomina como o “laço vivo das gerações” (1990, p.44,45)[1].

No quadro da relação com o passado, que é sempre eletivo, Pepe Brix funda sua identidade profissional e pessoal sobre uma memória histórica alimentada de imagens de um tempo prestigioso edificado num turbilhão de afetos conflitivos que abarcam, simultaneamente, as memórias das tragédias coletivas e as lembranças da alegria em comum ligadas com a prosperidade da atividade agrícola da colheita.

Ao escolher trabalhar e explorar a vertente documental da fotografia, nosso entrevistado mostra que uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A máquina fotográfica é o armazenador que torna real aquilo que muitas pessoas vivenciaram e vivenciam. Para ele, as imagens fotografadas são manifestações a respeito do mundo e, por isso mesmo, fazem da experiência capturada uma fonte de reflexão sobre “o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar”, indo de encontro à “ética do ver” e do olhar como argumenta a filósofa Susan Sontag em seu ensaio Sobre a Fotografia (2009, p. 12).

Chegamos ao problema dos usos do passado e do seu enquadramento com os jogos identitários do presente. Ao lado das fotografias antigas, os registos iconográficos do presente também transmitem ao grupo social o sentimento de participação em um panorama de eventos. As fotos são peças comprobatórias que asseguram a base legitimadora das memórias coletivas partilhadas. Por esta razão, seria correto afirmar que elas permitem ao grupo social construir uma memória unificada capaz de organizar uma identidade coletiva unívoca e inequívoca?

Coloca-se aqui uma questão final, fundamental – e perturbadora – do ponto de vista das relações entre memória e identidade: é-se açoriano eternamente?

 

  [1] Para Halbwachs: “A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escrita há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e das gerações” (1990, p. 45). Por esta razão, podemos dizer que o jogo da memória e da identidade se dá a ver mais facilmente através da memória genealógica e familiar.

 

Bibliografia Consultada

BRIX, Pepe; GONÇALVES, Daniel. Rumores para a transparência do silêncio. Lisboa: Difel, 2009.