Entrevistado:
Professor Doutor Ricardo Madruga da Costa. Professor da Universidade dos Açores. Historiador da cultura insular. Publicou diversos artigos sobre a história do arquipélago.
Análise do Depoimento
Antes de analisar a narrativa audiovisual, começo pelo relato autobiográfico que o professor Ricardo Madruga da Costa intitulou: As insularidades e a experiência vivida pelos estudantes das gerações de 50 e 60 do Liceu Nacional da Horta. Foi através deste artigo que estabeleci o primeiro contacto com o trabalho de investigação do professor e em torno dele iniciamos o diálogo que resultou na gravação da videografia.
No quadro da sua relação com o passado, nosso autor adverte o leitor que a natureza da sua reflexão é “meramente evocativa” e por isto não abarca “qualquer exercício de análise conceptual”. Esse método evocativo é muito convidativo porque se dedica a encontrar tudo o que permite a um grupo narrar-se a si próprio. Por consequência, o fenómeno geracional passa a ser abordado numa escala de grupo em diálogo com a experiência do tempo vivencial da contemporaneidade. Na presença destes traços vigorosos, somos guiados pela aprazível narrativa em primeira pessoa que confere a “credibilidade testemunhal” necessária para a materialização desta instigante busca memorial insular.
O que eu gostaria de frisar neste relato autobiográfico é a importância da passagem dessa temporalidade interior individualmente testemunhada para a percepção do destino coletivo de uma geração unificada como comunidade. Uma comunidade que partilha as mesmas influências intelectuais, religiosas e políticas condicionadas pela geografia e pela meteorologia insular.
Deste modo, convém apreender o relato como um monumento da memória que trabalha na elaboração do significado da insularidade tendo em vista o fenómeno geracional, pois, como adverte Madruga da Costa, as suas “memorações” têm em vista um “segmento específico de açorianos”. Dito isto, convém perguntar: o que o nosso autor entende por insularidade? Como ele articula a vivencia insular com a tão simbólica açorianidade? Passemos a palavra a ele para sermos mais fiéis e precisos nas nossas reflexões:
“Naturalmente que a condição do ser ilhéu não se restringe a um dado período ou a um dado grupo; cada açoriano vive essa condição de forma mais ou menos profunda independentemente do lugar ou da época em que decorre a sua existência. A essência do ser ilhéu é intemporal e é apercebida de modo mais ou menos intenso, mesmo quando não somos capazes de o exprimir. Na verdade, para uma boa parte da gente das ilhas, a insularidade não se aprende; simplesmente interioriza-se num processo que se desenvolve de par com a existência de cada pessoa” (2017, p.527).
Mais adiante, ele observa:
“[…]a insularidade define uma circunstância inerente à condição do ser ilhéu, como criatura isolada, marcando psicologicamente a sua personalidade e dando lugar a uma visão peculiar ao nível da própria percepção do mundo e da realidade envolvente, porque apercebida com o distanciamento que aquela condição implica. Esta condição pode, eventualmente, mas não necessariamente, dar lugar a um estado de espírito associado a um certo sentido de perda quando em situações de afastamento e, não raro, pode estimular um certo pendor nostálgico” (2017, p.528).
Acerca da Açorianidade, ele acrescenta:
“Vista desta forma, a insularidade não se confunde com a açorianidade de Nemésio. Nesta, a complexidade e a variedade dos elementos caracterizadores abarca a própria insularidade. Sem esta, obviamente, o desenvolvimento do conceito não seria inteligível. Porém, a insularidade, num sentido estrito, associar-se-ia, muito simplesmente, à consciência de ser ilhéu. Naturalmente, quando passamos às implicações dessa pertença geográfica específica, o campo da análise alarga-se e a reflexão leva-nos a fazer intervir factores que se cruzam com essa ideia mais abrangente que é a da açorianidade” (2017, p.528).
Nestas passagens inspiradas e repletas de reflexões profícuas, o relato autobiográfico ganha a densidade do olhar erudito do investigador da cultura insular. Um modo de ver que não é espontâneo pois exige elaboração conceitual. Exige um desdobramento de “perspectivas” que leva o nosso narrador-investigador a percorrer o liceu faialense e demais lugares de referência para o convívio dos jovens da geração dos anos 50 e 60 em busca da “observação de fenómenos ímpares”.
É assim que na Horta, “a mais insular das cidades dos Açores”, nosso autor caminha pelo “Café Volga do Sr. Branquinho” e pelo “Café Sport do Sr. Henrique Azevedo” relembrando histórias “com sabor a mar e a aventura”. Histórias contadas por Mestre Chicharrinho, Pexita, Catita, Cigano, Vicente entre outros “homens da baía”. Padre Correia também surge na lembrança como o generoso porta voz do memorável movimento da “Acção Católica”, instituição que unia o “religioso e o profano”, as missas e os jogos de tabuleiro, representando para a geração em questão uma verdadeira “escola de vida e de valores”.
As suas lembranças agora seguem em direção ao mar. Navegar pelo mar é, sobretudo, atravessar o canal que vai da ilha do Faial até à ilha do Pico. É navegar nas recordações que contam a história do transporte marítimo e dos seus heroicos marinheiros: Mestre Simão, Mestre Guilherme e Mestre Gilberto Mariano.
A irrupção do recordar mostra-lhe que é impossível esquecer a imagem de um vulcão que entrou em erupção. Para ele e para aqueles que assistiram com perplexidade o cataclisma do vulcão dos Capelos e sentiram a terra estremecer, no mês de setembro de 1957, as imagens são determinantes para estabelecer as lembranças do mundo insular. Estas afinidades de posições diante do que é inesquecível lhe indicam como se produz o enraizamento sociomemorial e como se molda uma solidariedade sob medida entre os membros de um mesmo grupo.
Com essa perplexidade derradeira, passamos do relato autobiográfico para o depoimento videográfico sem perder de vista que a insularidade é a palavra chave que instaura uma relação dialética com a memória partilhada. Proporia, então, que a rememoração implica uma certa clivagem do ofício de historiador, pois não se trata apenas de não esquecer o passado mas, sobretudo, pensar o momento presente e a ele dedicar uma atenção precisa, em particular à ressurgência da nostalgia.
“Os Açores foram realmente, desde longos anos, aquilo que muito apropriadamente se pode chamar uma encruzilhada do Atlântico. O [historiador] Magalhães Godinho dizia que os Açores eram o lugar de todos os regressos: mas, é de todos os regressos mas também era o lugar de todos os embarques. E aqui nos Açores exatamente essa vertente dos embarques tem a ver muito com essa história da insularidade. Porque a insularidade não diz respeito somente aqueles que vivem nas ilhas, que aqui permanecem, que aqui fazem a sua vida e que daqui nunca saem, e as vezes é mais apercebida e mais vivida por aqueles que se ausentaram. Porque nesta falta, nesta rotura em relação aquilo que lhes dava um sentido de pertença cria-se um sentimento quase de nostalgia, de falta, de ausência que vai moldando também uma insularidade que não é nos seus cambiantes a mesma daquele que ficou e que não se ausenta. E, portanto, julgo que este exercício à volta das insularidades é um exercício muito curioso porque comporta muitas vertentes (2 min 10s – 3 min 17s ).
Encontramos aqui um modo privilegiado de demonstração da transmissão da identidade. Transmissão memorial que através daqueles que emigram das suas ilhas deixa como legado uma maneira de estar no mundo.
Ao transmitir suas memórias, nosso narrador faz reviver tanto as suas significações particulares como os referenciais coletivos que contribuem para o seu compartilhamento.
“Quando eu regresso aos meus tempos dos anos 50 e 60 quando eu era estudante. Ali, na cidade da Horta, convivi com estudantes que vinham de São Jorge, da Graciosa, do Pico, das Flores. Á distância é possível nos apercebermos que cada um daqueles grupos de uma dada ilha tinha uma forma específica de estar; tinha uma maneira própria de reagir que tinha a ver com o seu ambiente familiar e com suas condicionantes. Portanto, essa perspectiva da insularidade é uma perspectiva que tem de ser vista de uma maneira multifacetada” (3 min 23s – 4 min – 3s).
Se memorizar e conservar saberes coletivos, reminiscências e acontecimentos emblemáticos suscitam o sentimento de pertencimento, podemos dizer que a “semântica da memória” de um grupo mobiliza as funções de revivescência e reflexividade. Ao pesquisar sobre o papel exercido pela geração dos anos 50 e 60, o professor Ricardo Madruga da Costa ensina que a simples evocação da existência de um grupo e a especificidade da sua memória geracional tem efeito de estocagem e difusão de um conteúdo memorial consistente factual e fundamental do ponto de vista das representações identitárias.
Bibliografia Consultada
MADRUGA DA COSTA, Ricardo. “As insularidades e as experiências vividas pela geração de 50 e 60 no Liceu Nacional da Horta”. Coleção Estudos e Documentos, nº 22. Lisboa: U. Católica, 2017.