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Quarta Videografia Terceira: A Ilha de Vitorino Nemésio



Entrevistado:

António Manuel Bettencourt Machado Pires. Professor Catedrático aposentado da Universidade dos Açores (UAc). Licenciou-se em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Foi assistente de Vitorino Nemésio e docente de História da Cultura Portuguesa, bem como assumiu a cadeira após a jubilação de Nemésio. Autor de diversos títulos na área dos estudos literários.

Análise do Depoimento

Temos, aqui, uma exceção: eu não entrevistei o entrevistado. Apropriei-me de uma entrevista feita por outrem mas que deixa dito tudo o que eu julgo primordial ouvir a respeito de Vitorino Nemésio. Diz muito da sua literatura pensante e sofisticada e diz também muito da sua personalidade insular e vulcânica.

É a entrevista ideal embora apareça parcialmente reproduzida e largamente editada para adequar-se aos meus inabaláveis propósitos. A sua idealização está fundamentada nas virtudes concretas e singulares do entrevistado. Além do professor Machado Pires ser um rigoroso exegeta do pensamento nemesiano, ele é o herdeiro do lógos do mestre nos mesmos moldes canónicos estabelecidos por Platão diante dos seus companheiros socráticos. No livro I da República, o filósofo grego mostra que ser o discípulo autêntico de um sábio mestre significa ir além da repetição das lições recebidas, visto que, o verdadeiro herdeiro do lógos é aquele que aumenta a herança recebida.

Inspirada neste quadro de diálogos entre os sábios de agora e os de outrora, apresentarei algumas considerações sobre o itinerário amoroso percorrido por Nemésio em o Corsário das Ilhas tomando como ponto de partida o depoimento primoroso apresentado pelo professor Machado Pires:

“Nemésio é um homem da sua ilha. E a sua ilha era o mundo interior dele. Tudo ele procurava referenciar à ilha e às suas recordações de infância. Mas, a ilha para ele não era só a ilha em que ele nasceu, a ilha Terceira, era a ilha como arquétipo, como modelo, como condição insular. E, portanto, é o exemplo do supra bairrismo, um exemplo do modelo da ilha arquetípica, uma ilha interior ou interiorizada” (3 min 30s – 4 min 03 s).

 

A ilha como arquétipo é símbolo de um conhecimento denso que faz clarear a memória antiga do poeta. A meu ver, o pano de fundo desse trabalho extenuante da memória cria no poeta uma profunda consciência sobre o caráter efémero do presente. Da mesma maneira, a memória que tudo anima, desperta, de forma paradigmática, o encontro íntimo e sentimental de Nemésio com a sua condição insular em explícito contraste com a imagem do supra bairrismo, crucial para determinar o alcance cosmopolita da sua literatura.

Um narrador, um autor, um viajante ou, como prefere Nemésio, um “corsário das ilhas” a percorrer uma dupla travessia feita ao interior de si mesmo e permeada pelo percurso tangível das suas ilhas, da sua cultura e da sua gente. Vai o corsário narrador em busca das suas verdades, das suas próprias transformações que ele encontra pelos caminhos que o mar o leva. Ou ainda mobilidade de palavras e de pensamentos que anunciam com emblemática eloquência a fatalidade da condição insular: (…) “sou ilhéu e portanto embarcadiço” (Corsário das Ilhas, 1996, p. 121).

É na magia da recordação, onde o passado vive por um tempo equivalente à fascinação da viagem, que o poeta junta todos os fragmentos da sua vida com o objetivo de negar o esquecimento, a destruição e o desaparecimento de todos os lugares e pessoas que esse trajeto do ver prepara para revelar.  Imagens, vestígios, traços, ruínas – na gradação do desaparecimento e na passagem entre os atos de ver e os atos de escrever, o corsário poeta vai e volta na história das ilhas açorianas.

“Os Açores são humanamente mais novos que a Madeira cerca de um quarto de século. Em vez de uma grande ilha pletórica que reduz Porto Santo a uma relíquia, como acontece ao grupo insular madeirense, pontuado pelas desertas, dos Açores já se disse que são como um porta-aviões de seiscentos quilómetros, tantos quantos separam Santa Maria do Corvo” (1996, p.45).

Contudo, convém observar que Nemésio não frequenta com grande entusiasmo a História institucionalizada pelo discurso académico. Isto porque o seu verdadeiro interesse histórico habita os lugares de memória que conhece e que lhe contam em narrativas a vivência entrelaçada das coisas e das pessoas.

 

“Não quero mais paisagem. Vou ao mercado ver os melões do Trovão e os torresmos do Facelita. Entro no Jardim (e recaí…). Mas é a navegação da paisagem o que eu aqui procuro! Reconheço os lugares, as relações das pedras, – mais nada! (…) Já cá não está o Salvador com a sua barba branca de guardião paradisíaco; já se não ouvem lá em cima as tacadas do croquete nas tabelas e o António dos Santos, quixotesco, esfregando as mãos: – Bela bola! Mas a alma do jardim é esta… O segredo da vida aqui está! Ali foi o caramanchãozinho das gueixas e o mais que se mudou, acolá sentavam-se o sr. Vilar, o sr. Picanço… O sr. Vilar, que, pigarreando, proclamava de quarto em quarto de hora contra a inanidade ilhoa:

– No Continente, sim! Isso é que são terras! (1996, p. 111).

 

Vibrante percepção da vivencia da sua ilha natal e da sua castiça autenticidade que seguem rumo à organização cognitiva da experiência temporal. Uma  percepção tão dinâmica quanto o vai e vem das ondas do mar de onde tira o ilhéu a sua mundividência. Tal como anunciou Nemésio: “Movimento e força; outras vezes tranquilidade e pasmo… Extensão… extensão… (…) brutalidade oceânica que é afinal a única coisa delicada e discreta da nossa vida” (1996, p. 60).

Encontramos em Nemésio uma pulsão demorada, detalhada e individualizante de autobiografia que encontra na condição insular a potencialidade de uma partilha de sentidos encarnados em histórias e reflexões singulares. É o que lemos no capítulo III, denominado Vida de Bordo, pertencente ao grupo de textos do primeiro corso realizado em 1946.

A viagem começa com a descrição dos afetos despertados pela emoção do embarque no barco a vapor que lhe parece um “tabuão à deriva”, muito distinto do “clássico vapor das ilhas” que singrava o mar nos seus tempos de estudante.

Nas palavras de Nemésio:

“Atiro-me de alma e coração a este roteiro tanto tempo sonhado e só agora empreendido. É uma viagem banal, dez vezes feita e desfeita nos seus dois rumos monótonos, precedida das mesmas expectativas e seguida de iguais recordações. As recordações desta etapa escapam-se por enquanto (claro!). Mas as expectativas…” (1996, p.67)

 

E a viagem (re)começa com um mar a ser atravessado – mar da memória – das possibilidades, dos encontros, da fluidez das formas e do fluxo narrativo:

“Mas já vou mesmo!… Despedi-me. Embarquei. Parti. Fiz, enfim, um par de pretéritos perfeitos e próprios das viagens… Já o meu próprio escrever é fluído como o mar e, como ele, ilógico. Uma cinza húmida e fresca tornou-se comum às águas, ao céu, à alma, à cabeça. Só o coração vigia inteiro e saudável nas primeiras derrotas do mar. (Eu durmo e o meu coração vigia).

Navegamos ambos, o coração e eu. Parece que a essência do navegar é o velar”… (1996, p.67)

 

Viagem aos Açores. Viagem da narrativa. Viagem da memória.

Viagem de um viajante que precisa escrever para fazer lembrar que a memória escrita prolonga a vida diante do esquecimento e do mar sem limites.

 

Bibliografia Consultada

NEMÉSIO, Vitorino. O Bicho Harmonioso. Porto: Imprensa Portuguesa, 1938.
________, Vitorino. Sob os Signos de Agora. Obras Completas: (volume XIII). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994.
________, Vitorino. Corsário das Ilhas. Obras Completas: (volume XVI). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996.
MACHADO PIRES, A.M.B. Rouxinol e Mocho. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009.