Sr. Genuíno Madruga, mestre pescador, navegador e empresário. Realizou duas circum-navegações à vela em solitário. Foi o primeiro navegador português e o décimo a nível mundial a dobrar o Cabo Horn navegando do Atlântico para o Pacífico. Autor do diário de viagens: O mundo que eu vi.
Análise do Depoimento
A verdadeira diferença entre a aura que pode ter um viajante e aura de um turista repousa no tipo de relação que ambos estabelecem com o tempo e com o significado da viagem[1]. Para muitos antropólogos contemporâneos, a economia do tempo ditada pela concessão de um período de férias anualmente pré-determinado tende a agir contra o turista. Ele permanece fora de seu ambiente habitual durante um breve intervalo de tempo e usa a viagem para mitigar sentimentos de insatisfação e angústia muitas vezes produzidos pela rotina tediosa do trabalho. Viajar é para o turista uma estratégia leviana e hedonista de fuga da realidade. Para documentá-la, o turista sente-se compelido a registar, através de fotografias, sequências de consumo realizadas longe dos olhos da família, dos vizinhos e dos amigos. Em resumo: o turista é um falso viajante.
Sem insistir nessa dicotomia e sem depreciar o turista, passarei ao largo do erudito debate dos antropólogos para me aproximar daquele que julgo ser o debate mais fértil acerca do viajante autêntico.
Instituído pela literatura e pela filosofia, o verdadeiro viajante representa a transmutação histórica das estratégias de mobilidade coletiva e habita o nosso imaginário cultural. De Homero a Camões, de Montaigne a Raul Brandão, o viajante é portador de um ideal, de uma verdade, de uma perfeição absoluta. O viajante transforma em realidade o nosso desejo de conformidade entre um gesto e um conceito.
É nesta tipologia do viajante forjada pela tradição literária e filosófica que proponho apresentar o depoimento do Sr. Genuíno Madruga. Ele nos mostra que viajar é, em essência, um ato de desejar. Viajar é o desejo da completude, da sublime harmonia entre um projeto e uma experiência. Desejar a plenitude é o ponto de partida da verdadeira viagem – tanto para turistas como para viajantes – e propicia uma relação intensificada e privilegiada com as várias formas de vida biológicas e sociais que deixarão a marca da sua presença no itinerário a ser percorrido.
Viajante profissional, navegador de longo curso, o Sr. Genuíno Madruga integra-se no grupo seleto de nobres ancestrais portadores do ADN do viajante verdadeiro. Fernão de Magalhães, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral, entre outros, suscitaram e suscitam o fetichismo da veracidade porque distinguiram-se da multidão anonima de viajantes ao demonstrarem qualidades particulares para enfrentar desafios, surpreendendo, sempre, por intermédio da virtude das suas peripécias.
Contudo, o Sr. Genuíno Madruga oscilou entre a modéstia e o mérito do engenho quando lhe perguntei se ele se sentia agregado à elite dos grandes navegadores portugueses:
“Eu não vivi nessa época [dos grandes navegadores]. Agora, de certeza absoluta, qualquer um desses grandes navegadores que navegaram pelo mundo todo: Fernão de Magalhães, Bartolomeu Dias, se calhar, João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira, Pedro Alvares Cabral se vivessem hoje, com certeza, teriam feito aquilo que eu fiz. Não tenho dúvida nenhuma, posso garantir. Agora eu, na época deles, eu não sei [como eu navegaria]. Os navios eram outros, a situação era outra. Talvez, talvez…” (22 min – 23 min 37 s)
Atualizar os feitos épicos do passado fazendo com que coincidam com a experiência do presente marca a ultrapassagem do limite entre o mundo de agora e o de outrora. Dissolve-se o contorno dos séculos, abre-se a cortina da periodização histórica e o olhar pode dirigir-se sem amarras aos alicerces da arte náutica. E é plenamente possível ver nesse diálogo plurissecular o efeito de um outro diálogo, a saber: aquele que se estabelece entre as recordações da infância e as realizações do presente.
“Eu nasci na Ilha do Pico, mas propriamente na freguesia de São João. A casa onde nasci é sobranceira ao mar. As primeiras visões que tenho do mar são de lá. Recordo-me daqueles dias em que o mar estava muito calmo, parecia assim um vidro, essa é a ideia que eu tenho quando tinha quatro ou cinco anos. E também recordo aqueles dias em que o mar parecia que queria comer as rochas. Ainda me lembro de ficar as vezes com salitre na cara porque eu gostava de estar ali a ver o mar. Sentado no balcão da nossa casa só a olhar para o mar. A ver o mar, o mar que vinha, que ventava que ia outra vez. Enfim, são visões que tenho dessa época.
Eu, com doze anos, construí um barquinho pequenino, uma chata pequenina, com dois metros e sessenta. Eu queria ir para o mar e não tinha outra forma. E, pronto, tive de construir e construí o que foi possível.
Depois fui crescendo aqui, nessa Ilha do Faial, e vendo todos aqueles que chegavam – que na altura eram os aventureiros, chegavam aqui gente de todo o mundo. No liceu, a primeira língua que aprendi foi o francês, mais tarde o inglês, eu tinha treze, catorze anos, e então assim que chegavam os aventureiros na doca, eu tentava falar com aquela gente. Procurava saber de onde é que vinham, quantos dias de viagem, quantas pessoas estavam no barco, se calhar, os acontecimentos de bordo. Às vezes, pedia-lhes se tinham um livro, uma revista ou uma coisa qualquer. Eu ia guardando aquelas coisas todas e tudo ia ficando aqui dentro [apontando para a própria cabeça]. E olhando para as pessoas e para os barcos, eu pensava: se calhar um dia eu também possa [viajar como eles].
Tive de trabalhar muito [para comprar o barco] pois a única coisa que eu tinha eram as minhas ideias, mais nada” (02 min 49 s – 07 min).
A recordação da infância desempenha um papel central na realização do sonho de navegar seja como instrumento de unificação de momentos significativos, seja como instrumento de autoconstituição. O Sr. Genuíno Madruga tirou conclusões poéticas de seu discernimento quanto ao fato de que o indivíduo cria a si mesmo com a matéria das recordações e com a força da imaginação. Ele fez dessa convicção a essência da sua práxis como navegador.
Um exemplo: o seu diário de viagens O Mundo que eu vi é o projeto de uma autobiografia como autogénese impulsionadora do trabalho poético da recordação. Um diário escrito contra a erosão do tempo e que se notabiliza por recriar as emoções sob a marca da posteridade, revestindo-as com uma roupagem que lhes concede uma vivacidade suplementar.
Podemos concluir postulando que a recordação autobiográfica significa, para o Sr. Genuíno Madruga, reflexividade, observação de si próprio no fluxo do tempo. O “eu”, autobiografado, desdobra-se em um eu que recorda e em outro que é recordado ao criar uma vinculação clara entre memória e viagem, tal como um mensageiro portador da tradição épica das grandes navegações.
[1] Sobre a questão da “verdadeira viagem” e do “verdadeiro viajante”, conferir o elaborado estudo do antropólogo francês Jean-Didier Urbain. Nos livros L’Idiot du voyage: histoires de touristes e Le voyage était presque parfait – Essai sur les voyages ratés, ele combate a tão difundida visão binária que opõe turista e viajante. Visão reducionista que constitui, segundo nosso autor, uma verdadeira “armadilha retórica” desprovida de argumentos consistentes.
Bibliografia Consultada
ÁVILA, Ermelindo. A Ilha do Pico: crises económicas. Angras do Heroísmo, 1998.
BRANDÃO, Raul. As Ilhas Desconhecidas. Prefácio: A.M.B. Machado Pires. Ponta Delgada: Artes e Letras, 2009.
MADRUGA, Genuíno. O mundo que eu vi. Ponta Delgada: VerAçor, 2011.