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Segunda Videografia Flores: A Ilha da Serenidade



Entrevistado: Sr. João Vieira.

Fundador do museu das Flores. Investigou a cultura baleeira e seu produto cultural mais elaborado: o scrimshaw.

Publicou a série de sete livros intitulada: O Homem e o Mar, em refinada edição bilíngue inglês/português.

 

Análise do Depoimento

 Iniciarei minha análise no campo da inscrição mnemónica recorrendo às imagens da memória que possuem forte carga emocional. Minha proposta consiste em focar certas imagens marcantes que se fixaram na experiência subjetiva do Sr. João Vieira e que possuem, simultaneamente, a capacidade de sinalizar um arco de tempo específico ligado à história da sua ilha. Irei apresentar essas imagens a partir das reflexões empreendidas pelo filósofo francês Georges Didi-Huberman em seu livro Diante do Tempo.

Iniciemos com o depoimento do Sr. João Vieira. Ele apresenta-se dizendo que nasceu numa família de dez filhos. Uma família cuja função era “povoar a ilha”. As suas mais remotas lembranças oriundas da infância estão entrelaçadas com os acontecimentos que marcaram o fim da 2ª grande guerra.

“A ilha das Flores, dado o seu posicionamento geográfico, situava-se no corredor marítimo das rotas do Atlântico Norte. Ora, com a guerra, todas as tropas aliadas foram concentrando no Reino Unido. Veio o Canadá, veio a América para desembarcarem no dia “D” na Normandia. Razão pela qual esses comboios passavam na Ilha das Flores.

Naquele tempo não havia radar nem havia GPS. As comunicações eram deficientes e escassas, usava-se o Sextante. (…) Eles (os navios)eram obrigados a passar aqui perto da ilha porque era o lugar para eles se orientarem. Eu me recordo, quando era menino e moço, as pessoas diziam o navio veio cá acertar as agulhas. E o que era acertar as agulhas? A navegação que se fazia desde o tempo do Vasco da Gama era com os astrolábios. Depois veio o octante náutico, depois veio o sextante que era sujeito a pequenas avarias.

Como a ilha das Flores situava-se num lugar exato, com coordenadas que não se podia mexer de um lado para o outro, os navios vinham cá fazer o que chamavam de “abater as derrotas”. Porquê é que chamam de “abater as derrotas”?

As seis da manhã são tirados as coordenadas e os azimutes. Ao meio-dia, quando o sol atinge o zénite, que dá o meridiano do lugar, são tiradas novamente e as seis da tarde. Aqueles três conjuntos dá a localização onde estamos.”

 

Nessa passagem temos em destaque não só o tema da guerra, mas a própria experiência da arte da navegação apresentada como uma espécie de protomodelo de todas as técnicas, sinónimo de sabedoria que tem como modelo o mar. O Sr. João Vieira contempla a história da guerra por esse viés do mundo náutico. A intensidade emocional das suas lembranças ligada às imagens dos navios de guerra que passavam próximo da sua ilha permitem que façamos delas um tratamento em conjunto ao refletirmos sobre as ligações decisivas que aproximam paisagem e memória.

Ao entrarmos no território da memória do Sr. João Vieira tendo o mar como o marco do que é memorável, capaz de desvelar o que já não é mais visível, temos um arquivo que propicia a aparição súbita de imagens. É ao ritmo de uma “arqueologia psíquica”, tal como foi postulada por Didi-Huberman para refutar a “redução positivista da história”, que o trabalho da memória se aprimora (2017, p.133). Um trabalho que busca nas imagens rememoradas a matéria prima que sobrevive na psique, de forma consciente ou não, à passagem do tempo.

Enquanto arqueólogo da memória, o Sr. João Vieira é capaz de ler o passado trazendo à tona os sedimentos decantados no mar da história náutica. No seu olhar, nos seus gestos, nas suas palavras metódicas ou titubeantes, a memória atua dando suporte e fundamento para a compreensão histórica.

 

“Vim ao mundo num mundo de conflitos.

Eu me recordo de ver naquelas noites de verão, na linha do horizonte, uma série de descargas que eram os torpedos dos submarinos e depois ouvia o retumbar daquilo. Parecia trovoada ao longe. Então diziam que eram os submarinos alemães a tentar torpedear os navios que vinham com abastecimentos para o Reino Unido à espera de desembarcar no dia “D”. E eu ficava muito perturbado. Se há pessoa que é pacífica, sou eu.”

A imagem de um turbilhão de torpedos a alvoroçar uma pequena e pacata ilha impõe a rememoração de fatos e de coisas que tiveram seu tempo num “mundo de conflitos”. Com a sua pacífica serenidade, a ilha e o seu memorioso habitante abrem uma via de acesso ao prisma arqueológico do tempo. Um tempo que está longe de nós e cujo próprio distanciamento permite-nos o acesso aos seus vestígios, aos seus lugares comuns e às hierarquias dos seus paradigmas teóricos. Um tempo que também está longe do Sr. João Vieira, hoje um senhor octogenário que, na condição de narrador das suas próprias vivências, rememora a sobrevivência da sua infância. Uma infância que faz retumbar, mesmo na superfície mais tranquila da sua ilha, os ecos da barbárie produzida pela guerra.

É a partir das memórias da infância do Sr. João Vieira que podemos detetar a ideia de harmonia projetada na onipotência da presença do mar e sedimentada em certas imagens que aparecem carregadas de força expressiva. Referindo-se às imagens do mar que condicionaram todas as fases da sua existência, o Sr. João Vieira declara:

“Fui com seis anos para a escola. Eu fugia da escola e ia para a tenda do Mestre José da Costa que era um baleeiro muito amigo do meu pai[1], um dos velhos baleeiros de longo curso. Contava aventuras dos mares do sul, nas ilhas Samoa, nas ilhas Fiji, andaram por aí na baleação.

Eu queria ser baleeiro. Eu disse: se me derem uma carta náutica, uma bússola boa e uma tabela, eu navego para qualquer parte do mundo”.

As imagens dos baleeiros e das suas épicas viagens pelo vasto mar são como um aguilhão que estimula a longevidade dos gestos e das emoções da infância. Elas reativam e apaziguam as experiências conflituosas e através delas vemos a reencenação das ações do nosso narrador. Daí compreende-se porque para ele a baleação e as demais artes náuticas devem ser vistas como o continuum da história da ilha. O medium que corresponde a possibilidade de restauração e de comunicação do tempo orgânico do mundo da experiência que é portador do ocorrido e da promessa de trazê-lo para o nosso agora.

Por fim, gostaria de relembrar, ainda que de modo muito sucinto, as palavras do filósofo francês Georges Didi-Huberman:

“a imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro do que o ente que a olha” (2017, p.10).

[1] Convém observar que o pai do Sr. João Vieira foi baleeiro. Chamava-se João Gomes Vieira e pertenceu à geração que impulsionou a economia da ilha através da baleação.

 

Bibliografia Consultada

VIEIRA, João Gomes. O Homem e o Mar – Embarcações dos Açores. Lisboa, Edição de Autor, Intermezzo-Audiovisuais, Lda., 2002.

VIEIRA, João Gomes. O homem e o mar : artistas portugueses do marfim e do osso dos cetáceos: Açores e Madeira – vidas e obras. Lisboa: Intermezzo-Audiovisuais, 2003.

VIEIRA, João Gomes. O homem e o mar : os açorianos e a pesca longínqua nos bancos da Terra Nova e Gronelândia. Lisboa: Intermezzo-Audiovisuais, 2004.

VIEIRA, João Gomes. O Homem e o mar : os açorianos e as pescas : 500 anos de memória. Lisboa : Intermezzo, 2006.

VIEIRA, João Gomes. Família Dabney 1804-1892 : memória de um legado. Açores: [s.n., 2005.

VIEIRA, João Gomes. O Homem e o mar: portos e marinas do arquipélago dos Açores : passado, presente e futuro.  fot. Afonso R. Duarte… [et al.]  trad. Murray Todd. Lisboa: Medialand, 2008.