Entrevistado:
Entrevistado: Sr. Clímaco Cunha. Empresário, autor dos livros: Festas do Espírito Santo da Calheta de São Jorge, O Terço do Espírito Santo.
Recolheu, organizou e publicou grande parte da história oral da ilha no opúsculo: Lendas da Ilha de São Jorge.
Análise do Depoimento
Num mundo essencialmente dominado pelo retorno monótono e circular da temporalidade mecânica do relógio, encontramos na mise en scène do culto ao Divino Espírito Santo, na Ilha de São Jorge, um messianismo positivo e cheio de esperança, anunciador do tempo do advento da Idade de Ouro.
É nessa perspectiva que o Sr. Clímaco Cunha define em seu depoimento as festas do Espírito Santo ao considerá-las como o momento de transmissão de uma sabedoria onde a evocação do passado significa estar atento à felicidade do presente, cujo principal propósito é a prosperidade e a vida justa entre os homens.
Com os olhos voltados para o horizonte da tradição, enquanto as tempestades da história nos arrastam, inexoravelmente, em direção à pós-modernidade, longe do Éden e da vivência do sagrado, o Sr. Clímaco observa:
“O Espírito Santo, segundo informações remotas, vem para os Açores muito cedo. Mantém-se, distribui-se por todas as ilhas dada a grande crença e os problemas que tínhamos nos Açores por estarmos muito isolados. Havia os vendavais, os terremotos, os vulcões, todas essas coisas, e as pessoas agarravam-se muito ao Divino e a partir daí faziam promessas para socorrer os mais necessitados. As promessas eram sempre feitas nesse âmbito, acudindo aos necessitados. E assim se foi desenvolvendo e se tem mantido pode-se dizer até hoje.
Fiz uma pesquisa a nível de concelho e vi que em cada lugar estas festas se processam diferentes umas das outras. Elas são bastante diferenciadas. No entanto, o sentido final de toda essa situação é sempre fazer o bem: ajudar os pobres, distribuir sopas aos pobres e, portanto, tem esse sentido sempre apoiado pela religiosidade” (05 min 46s – 07 min 08s).
Gostaria de apresentar uma leitura mais antropológica e mais filosófica acerca do depoimento do Sr. Clímaco Cunha, pois os autores que vou citar são o antropólogo João Leal e o filósofo Agostinho da Silva. Uma leitura que considero menos dramática e mais luminosa e humanista.
Segundo o professor João Leal, podemos ressaltar como característica principal das festas do Espírito Santo nos Açores a anunciação do advento do Império do Espírito Santo. Esta característica central assim demarcada envia-nos, observa Leal, à tese determinante do filósofo Agostinho da Silva sobre o Espírito Santo bem como ao debate por ele empreendido acerca da identidade portuguesa. Para o filósofo, as festas são, duplamente, lugar de culto religioso e, em torno dele, lugar de organização política sob a forma dos convivas que compartilham a mesma mesa e o mesmo pão[1] (Leal, 2017, p. 91-97).
Convém observar, como nos mostra Leal, que Agostinho da Silva teve o seu primeiro contato com as Festas do Espírito Santo no Brasil, junto da comunidade de base açoriana, quando era professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Desta experiência, ele colheu a inspiração necessária para escrever seu ensaio filosófico Considerando o Quinto Império. Na companhia da História do Futuro do Pe. António Vieira e do épico poema Mensagem de Fernando Pessoa, Agostinho da Silva explicita no ensaio uma fórmula várias vezes repetida pelo Sr. Clímaco Cunha: “o sentido final das festas é sempre fazer o bem e socorrer os mais necessitados”. E é por isso que o filósofo considera que “a religião do Espírito Santo representa o essencial da visão religiosa dos portugueses”: uma visão focada no “comunitarismo utópico”[2]. Sintonias de ideias e de ideais que aproximam o filósofo da tradição popular e da memória viva do culto geradas no espaço insular (e transatlântico).
Oralidade e escrita também atravessam como tema de reflexão o depoimento do Sr. Clímaco Cunha. Para garantir a certeza da duração, ele dedicou-se ao registo das lendas mais emblemáticas da sua ilha, todas elas recolhidas da tradição oral e vivificadas pela fé no poder miraculoso do Espírito Santo.
Numa atmosfera de dádivas milagrosas, as lendas compiladas pelo Sr. Clímaco articulam, sob a forma da parábola, a reverência religiosa e a inquietação popular diante da magnitude da natureza suntuosa e cataclísmica que define a ilha. Dentre as lendas citadas pelo Sr. Clímaco, pude verificar a presença de uma estrutura comum: a transmissão de uma sabedoria que expressa uma coerência interna na visão do mundo, uma totalidade e uma bela harmonia que em tudo se opõe à trivialidade do cotidiano ao instituir a transcendência do divino.
Vejamos como o nosso narrador articula a crença religiosa nas lendas e o comportamento existencial do seu grupo social diante delas:
“Todas essas lendas eram tidas como reais, como verdade. Há até pessoas que diziam que tinham acompanhado situações e que eram reais” (17min- 17min- 18s).
“As pessoas aceitam a lenda com muita força porque está dentro do seu âmbito, do seu espaço. Consideram que a lenda é uma realidade”(20 min- 10s – 20 min-50s).
Ora, a essência da lenda é, sem dúvida, a oposição real-irreal criada através de narrativas que permitem estabelecer uma troca profusa de dons entre este mundo profano e o mundo sagrado concebido como território do eterno mysterium tremendum.
Como exemplo, podemos recorrer à célebre lenda do Ilhéu do Topo. Poderíamos dizer que, nesta saga, o Divino interfere ao transportar do Ilhéu até à Ilha de São Jorge o gado que lhe foi oferecido em sacrifício. Este deslocamento mágico e sobrenatural promovido pelo poder do Espírito Santo venceu as adversidades do mar tempestuoso salvando o rebanho bovino, cuja carne haveria de ser consumida por todos os fiéis num ritualístico banquete comunitário organizado para honrá-lo.
Sobre a irrupção do sagrado, cabe lembrar aqui as considerações feitas pelo historiador das religiões Mircea Eliade em seu célebre livro O Sagrado e o Profano:
“O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder” (1992, p.12).
O sagrado equivale ao poder. Equivale à vitória diante da finitude e das contrariedades da vida ou, parafraseando Mircea Eliade, o sagrado constitui um “modo de ser no mundo” é uma “situação existencial assumida pelo homem religioso”.
[1] Segundo o dicionário “Houaiss On Line”, a palavra companheiro vem do latim cum panis, aquele com quem se reparte o pão.
Nas arcaicas origens ibérico-castelhanas, a palavra é composta de con + pañero, que é alguém muito próximo que come o pão conosco.
Para nós, no Brasil, companheiro é sinônimo de amigo, parceiro (eventual), sócio (por interesse) ou colega (por obrigação ou formalidade).
[2] Agostinho da Silva, “Considerando o Quinto Império,” in Dispersos, org. Paulo Borges (Lisboa:
ICALP, 1988 [1960]), apud João Leal (2017): “Nação e império: Agostinho da Silva e as Festas do Espírito Santo”.
Bibliografia Consultada
CUNHA, Clímaco. Festas do Espírito Santo da Calheta de São Jorge. Horta: O Telégrafo, 2017.
________________. Lendas da Ilha de São Jorge. Opúsculo. Impressão independente, 2012.
SAMPAIO, Leonor. Aquém e além de São Jorge: memória e visão. São Jorge: Câmara Municipal de Velas, 2014.