×

Sexta Videografia Faial: A Ilha da Hospitalidade



Entrevistado:

Sr. José Henrique Azevedo. Proprietário do emblemático restaurante “Peter Café Sport”. Idealizador e fundador do museu do Scrimshaw. Possui a maior coleção de peças esculpidas em ossos e dentes de cachalote da Europa.

 

Análise do Depoimento

 

Em Tempo e Narrativa, o filósofo Paul Ricoeur escreve: “o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira narrativa (1985, p.85). Essa dimensão narrativa do tempo humano circunscreve o discurso de apresentação de si. Um discurso que se apresenta como um somatório de atos do passado e que busca ser o resultado lógico da identidade existencial ao lhe conferir inteligibilidade.

É essa aptidão especificamente humana que encontramos representada no depoimento do Sr. José Henrique Azevedo quando eu solicitei a ele uma seleção das três peças mais emblemáticas da coleção do seu museu particular, o “Museu do Scrimshaw”. Situado no mesmo prédio onde funciona o “Peter Café Sport”, o museu reforça, através da beleza artística das suas peças, uma visão de mundo própria a uma coletividade que durante cento e cinquenta anos organizou à volta da baleação sua história e seu destino.

Expliquei-lhe que, para os propósitos da minha investigação, considero como peças emblemáticas os exemplares que estão impregnados de conteúdo memorial e que possuem a aptidão de unificar as representações identitárias individual e coletiva.

“Eu sou o José Henrique Azevedo. Nasci em 1960. Sou proprietário da terceira geração do “Peter Café Sport”. O Café começou em 1918, com o meu avô Henrique Azevedo. Por isso escolhi para ilustrar a minha memória um trabalho mais pessoal em primeiro lugar, (aponta para uma escultura do avó feita em Scrimshaw).

É o meu avô, fundador do café, embora o negócio da minha família tenha começado no século XIX com o meu bisavô. Ele em 1888 foi em Lisboa participar de uma exposição que aconteceu no Marquês de Pombal, no centro da cidade, e era a preparação de Portugal para a exposição mundial que aconteceu no ano seguinte em Paris. Ano de inauguração da Torre Eiffel, 1889, e pela qualidade dos trabalhos que levou à Lisboa, ganhou uma medalha de ouro que está aqui no museu.

Em 1901 o bar veio aqui para essa rua para ficar mais próximo dos clientes que chegavam de barco. Aqui era a porta de entrada na ilha antes de haver o aeroporto. Aqui ele fundou a “Casa Açoriana”, onde continuou a vender artesanato, trabalhos feitos cá na ilha mas também já começou a vender bebidas.

Em 1918 o meu avô fechou esse espaço e abriu na casa ao lado o “Peter Café Sport”.  E chamou-lhe Café Sport porque ele gostava muito de praticar desporto” (06 min 30 s – 09 min 07 s).

 

Ao conceder o destacado primeiro lugar do podium memorial à peça em Scrimchaw que retrata o avô, o Sr. José Henrique Azevedo estabelece balizas sólidas que vão reforçar a organização das memórias, alimentando, deste modo, o sentimento de identidade e a crença em uma história comum ao grupo familiar e social.

Inventariar o que fica do vivido, utilizando as peças do museu, constitui a trama desse ato de memória que é sempre uma excelente ilustração das estratégias identitárias que operam em toda narrativa. Enquanto narrador que constrói seu próprio relato autobiográfico, o Sr. José Henrique Azevedo presentifica um passado feito de lembranças que não são puramente subjetivas. Ele mobiliza acontecimentos historicamente enraizados no grupo social ao qual pertence e encontra a confirmação da trajetória da sua identidade individual mediante as representações da identidade coletiva.

Passamos para a segunda peça selecionada pelo nosso narrador. Através dela a forma do relato, que especifica o ato de rememoração, se ajusta às condições coletivas de sua expressão.

 

“A segunda peça é o meu pai. O meu pai chama-se José Azevedo. Nasceu em 1925. Desde miúdo ajudou o meu avô aqui no café. Mas, foi a partir da segunda guerra mundial que ele passou a trabalhar só no café depois de trabalhar no porto, durante seis meses, a bordo de um barco inglês, com dezoito anos. A bordo desse barco, o chefe dele, um oficial inglês, pediu ao meu pai, um dia, se ao invés de chamá-lo José poderia chamá-lo de Peter.

Primeiro, acredito que fosse mais fácil usar a palavra Peter do que José. Mas, ele dizia ao meu pai que achava o meu pai parecido com o filho dele que morava na Inglaterra. Era uma forma de matar saudades.

Meu pai não se importou. Só que os outros ingleses que estavam no navio também o chamavam de Peter. E com os anos, o próprio café passou a ser chamado de “Peter Café Sport” (09 min 20 s – 10 min 24 s).

 

A memória que se dedica a registar impõe-se e dirige-se para uma retrospetiva descontraída que sinaliza a procedência da fixação do nome de um espaço icónico e confere a força da sua boa reputação. Temos aqui um tratamento envolvente do conteúdo histórico de um lugar de memória capaz de elaborar e compor os sentimentos da experiência originária. Através da peça em Scrimshaw vemos o resgatar de uma recordação que não é o reflexo passivo de uma simples reconstituição, mas ato produtivo de uma nova percepção.

Na terceira e última peça escolhida pelo Sr. José Henrique Azevedo prevalece a fórmula mnemónica oticamente redimensionada pela visibilidade estética do Scrimshaw. Contudo, há uma mudança de tom na narrativa que que passa a ser feita em primeira pessoa, evidenciando, de imediato,  que o nosso narrador busca uma metáfora imagética para elaborar o seu património mnemónico.

 

“A terceira peça tem a ver com a terceira geração, portanto, comigo. É uma peça em que se vê o Café Sport, eu atrás do balcão, uma série de clientes muito especiais que ao invés de serem pessoas são animais [baleias e golfinhos].

Este museu tem a ver com a caça e com a morte das baleias. Foi o derivado da caça. Eu costumo dizer que foi o derivado mais belo da caça à baleia. Além disso há, com certeza, outras coisas bonitas como os botes baleeiros que são barcos lindíssimos que desenvolvemos aqui nos Açores. Mas é aquilo que vai durar mais tempo porque é feito de material nobre que são os dentes de cachalote que é marfim” (10 min 20 s – 11 min 17 s).

Em toda essa sequência autobiográfica a recordação de uma história de vida parece justificar o destino individual, a singularidade do “eu”. Nosso narrador transforma a narrativa de si próprio em um “egomuseu” que atua como uma espécie de selo memorial[1]. A partir desse “egomuseu” podemos ver que aquilo que é inesquecível sempre está afetivamente carregado e intensificado mediante a atribuição de formas estéticas simpáticas à memória. Estetização que integra a linhagem genealógica, os valores da vida e a integridade do nome e da reputação.

 

[1] O termo “egomuseu” está relacionado com as considerações feitas pelo antropólogo Joël Candal acerca “dos acontecimentos que presidem a organização cognitiva da experiência temporal. Em seu livro inspirador, Memória e Identidade, ele escreve: “Cada memória é um museu de acontecimentos singulares aos quais está associado certo “nível de evocabilidade” ou de memorabilidade” (2012, p. 88).

 

Bibliografia Consultada

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

COSTA, Susana Goulart. “Museus e Coleções Privadas”. IN: MACHADO PIRES, A.M.B.. Roteiro Cultural dos Açores. Ponta Delgada: C.N.C, 2012.

LUSO-AMERICAN FOUNDATION. The Dabney’s: a Bostanian family in the Azores. New Bedford: Library of Congress, 2013.

MARTINS, Rui de Sousa. Viagens Fotográficas da Família Dabney: o olhar americano da diferença. In: VIEIRA, João Gomes. Faial: memória de um legado. Lisboa: Printer Portuguesa, 2012.