Fé e Festa
O culto do Espírito Santo concilia religiosidade e festividade popular. A sua prática ritualizada possui uma origem arcaica que remonta ao século XII e foi inspirada na devoção à Terceira Pessoa da Trindade. Presente nas nove ilhas do arquipélago, a sua ampla projeção cultural expressa a sensibilidade e o comportamento religioso dos Açorianos. Ligado aos dezoito conventos açorianos edificados pela Ordem de São Francisco, os festejos em honra do Espírito Santo são marcados pela fraternidade social, pela partilha da carne, do pão e do vinho numa celebração pública na qual os fiéis acreditam que o contacto direto com o Divino garante o seu aperfeiçoamento moral e o seu processo de salvação.
O ESPÍRITO SANTO PARÁCLITO E A MEMÓRIA ÉTICA:
O PRIMEIRO REGISTO LITERÁRIO
Na literatura cristã representada pelo Novo Testamento, encontramos nos testemunhos de São João, o evangelista, as primeiras referências ao Espírito Santo identificado como parakletos – o Auxiliador, a força divina que consola.
Esta novidade, segundo os especialistas[1], está relacionada com o modo independente com o qual João compôs o seu texto em relação aos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas.
Não por acaso, estes três evangelhos, predecessores do evangelho de João, recebem o nome de synopticos. Em grego, o termo synoptico significa “ver junto” indicando, deste modo, a existência de inúmeras similaridades patentes entre eles, sobretudo, na apresentação narrativa da biografia de Jesus Cristo. Similaridades que não encontramos no evangelho de João.
Qual o motivo desta diferença entre os evangelhos synópticos e o evangelho de João?
Dentre as inúmeras hipóteses interpretativas debatidas pela tradição hermenêutica, creio que a resposta mais convincente indica que a diferença reside na apropriação intercultural que São João estabelece ao utilizar, simultaneamente, as fontes veterotestamentárias – pertencentes ao antigo testamento, e as doutrinas do filósofo Fílon de Alexandria. Para muitos estudiosos, o filósofo é apresentado como uma influência importante por ter estabelecido uma síntese entre a filosofia grega e a teologia dos profetas presente no judaísmo bíblico.
Para os nossos propósitos, a fusão entre teologia e filosofia é essencial para compreendermos melhor qual é a função do Espírito Santo enquanto parakletos e porque esta sua identificação comparece de forma tão significativa na religiosidade dos Açorianos.
Antes de avançarmos com as nossas hipóteses, convém voltarmos a nossa atenção para os versos do evangelho joanino consagrados ao divino Espírito.
[1] Sobre a crítica recente, conferir: RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Ed. Loyola, 2008.
ZUMSTEIN, Jean. El Evangelio según Juan. Salamanca: Ediciones Sigueme, 2016.
Nas passagens acima citadas, a identidade do Paráclito e as suas funções divinas são descritas através de quatro expressões. Em Jo 14, 15-17 ele é o Espírito da Verdade (pneuma aletheias). Mais adiante, Jo 14, 25-26, ele é apresentado como o Espírito Santo (pneuma hagion), cuja função é ensinar todas as coisas (didakei pantas) que Jesus ensinou e garantir que elas sejam conservadas na memória (hypomnesei).
Assim, em São João, o Paráclito ensina nos momentos de dificuldade ao fazer o fiel recordar a própria ação de Jesus enquanto modelo a ser seguido e enquanto fonte de inspiração ética.
Neste sentido, o teólogo francês Léon-Dufour sugere que o Paráclito se revela como uma força divina que tem como tarefa animar os fiéis[1].
Para o teólogo, seria excessivo falar de uma personificação do Espírito Santo, visto que, a sua ação personificada manifesta-se na inteligência dos fiéis. E deve ser entendida como uma força inspiradora capaz de oferecer o auxílio certo nos momentos de aflição quando se faz necessário agir e falar com serena sabedoria.
Deste modo, a apresentação destas características identificadoras do Espírito Santo Paráclito, nos auxilia a aproximar a doutrina teológica da ética filosófica, como sugerimos acima. O Paráclito auxilia os fiéis a construírem a significação dos seus comportamentos. Ele se vincula à formulação de uma regra de vida ou de um conhecimento prático que evidenciam uma forma de racionalidade.
[1] Obra consultada: LÉON-DUFOUR, Xavier. Lectura del Evangelio de Juan II, Jn 5-12. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1992.
O ESPÍRITO SANTO E O CULTO AÇORIANO:
O TESTEMUNHO DE UM MODO DE VIDA
Se a tarefa intelectual com a qual os devotos do Paráclito estão comprometidos é fazer da ética ou da busca de sentido para o seu comportamento uma espécie de religião, tal atitude assume, na prática religiosa do culto açoriano, a preocupação com o outro e a escolha de um modo de vida inspirado num humanismo espiritualista fundamentado na caridade.
A este respeito, a Professora Doutora Maria Fernanda Enes argumenta em seu artigo – Construção da Açorianidade nas Festas do Espírito Santo, que a “festa é o culto” e através dela é divulgada a “linguagem escriturística e doutrinal do Paráclito – o que pode explicar o apego popular ao culto”( 2009, 133-134)[1].
E sobre a festa, ela observa:
“Os arraias, que envolvem a exposição pública da coroa e demais insígnias, os atos de diversão que acompanham as refeições rituais – as sopas do Espírito Santo e o bodo -, só aparentemente são pura diversão.
Eles integram o culto ao Divino dentro de um universo sacral em torno do qual se estruturam os laços de sociabilidade comunitária e se organizam as mundividências dadoras de sentido e inteligibilidade ao agir pessoal e coletivo”.
Os vínculos estabelecidos entre a festa e o culto, a ética e a virtude da caridade demonstram a mesma eficácia que concede sentido ao comportamento dos fiéis quando estes empenham-se no exercício do pensamento contemplativo inspirado pelo evangelho de João.
Essas são as lições do culto açoriano, que ele pode sem dúvida efetivar em ações concretas, mas ao preço de um verdadeiro engajamento ético e normativo.
[1] ENES, Maria Fernanda. “Construção da Açorianidade nas Festas do Espírito Santo?”. IN: Reflexão sobre Mundividências da Açorianidade. Org: Gabriela Castro, Berta Pimentel Miúdo, Magda Carvalho. Ponta Delgada: Nova Gráfica, 2009.